sábado, 12 de dezembro de 2020

Os poemas de Natal de Torga

 

Vinte e tal poemas explicitamente assinalados sobre o Natal e referidos ao longo dos últimos cinquenta anos da vida do poeta (Natal de 1940 - Natal de 1991). Escolhidos apenas cinco.

XVI volumes do Diário  de Miguel Torga  / Cancioneiro de Natal

Loa

É nesta mesma lareira,
E aquecido ao mesmo lume,
Que confesso a minha inveja
De mortal
Sem remissão
Por esse dom natural,
Ou divina condição,
De renascer cada ano,
Nu, inocente e humano
Como a fé te imaginou,
Menino Jesus igual
Ao do Natal
Que passou.

S. Martinho da Anta, 24 de Dezembro de 1969.

Natal

Todos os anos, nesta data exacta,
Momentos antes
De fechar o cartório
De poeta
— Um registo civil ultra-real —,
O mago desse arquivo de presságios
Regista de antemão o mesmo nome
No seu livro de assentos:
— Jesus… — repete com melancolia,
A consumar a morte prematura
Do nascituro,
E a lamentar que a mãe, Virgem Maria,
Humana criatura,
Continue a ter filhos no futuro
Condenados à mesma desventura.

S. Martinho da Anta, 24 de Dezembro de 1973.

 Natal

Soa a palavra nos sinos,
E que tropel nos sentidos,
Que vendaval de emoções!
Natal de quantos meninos
Em nudez foram paridos
Num presépio de ilusões.

Natal da fraternidade
Solenemente jurada
Num contraponto em surdina.
A imagem da humanidade
Terrenamente nevada
Dum halo de luz divina.

Natal do que prometeu,
Só bonito na lembrança.
Natal que aos poucos morreu
No coração da criança,
Porque a vida aconteceu
Sem nenhuma semelhança.

Coimbra, Natal de 1974.

 Natal

Ninguém o viu nascer.
Mas todos acreditam
Que nasceu.
É um menino e é Deus.
Na Páscoa vai morrer, já homem,
Porque entretanto cresceu
E recebeu
A missão singular
De carregar a cruz da nossa redenção.
Agora, nos cueiros da imaginação,
Sorri apenas
A quem vem,
Enquanto a Mãe,
Também
Imaginada,
Com ele ao colo,
Se enternece
E enternece
Os corações,
Cúmplice do milagre, que acontece
Todos os anos e em todas as nações.

Coimbra, 25 de Dezembro de 1983.

 Natal

Menino Jesus feliz
Que não cresceste
Nestes oitenta anos!
Que não tiveste
Os desenganos
Que eu tive
De ser homem,
E continuas criança
Nos meus versos
De saudade
Do presépio
Em que também nasci,
E onde me vejo sempre igual a ti.

Coimbra, 24 de Dezembro de 1988.



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